domingo, 26 de fevereiro de 2012

Cerveja

Um arroto. Dois. Aquilo vem e volta. (Devo ter refluxo... Só pode.) Mas era vômito. Chega uma hora que não dá. O organismo não aguenta mais tanta bebida alcoólica. De todo modo, já que é assim, ele enfia o dedo na garganta e põe tudo para fora.

Cuscuz, com legumes, ovos e sardinha. Capuccino, com um toque de chocolate. Vodca. Vinho. Cachaça com mel. Gabriela. Não ‘Gabriela’, a bebida... Ele vomitou na Gabi.

- Como pôde?!

- Eu não... uheeeeeeéhfr!

- De novo. Errr, eca! Você deveria ter bebido cerveja. Toda vez que você toma essas outras acontece isso. E o pior: você mistura!

- Me leva pra casa.

- Não, você não pode chegar assim. Painho vai brigar com a gente. Deite aqui. Não, na calçada, não. Aqui no meu colo. Sua namorada não vai se importar... Sou sua irmã mais velha, lembra?

- Minha namora... da, ela, mas ela tá bêbada igual a mim, né?

- É, Julinho. É. Que duas peças eu fui arrumar...

Na ida para casa, Gabriela estava limpa. Lavou os pés vomitados por Júlio, de apenas 14 anos de idade. As crianças estão muito avançadas hoje. Soube que nos EUA elas já nascem falando inglês.

Bem, no banco de trás, iam os dois namorados embriagados. Dormindo.

- Ei, amor. Vamos parar num motel e deixar os dois no carro, dormindo.

- Não, você tá louco?!

- Mas eles não podem chegar assim na sua casa mesmo... – sugeriu o namorado da... – Vamo, Gabi! – Peraí, deixe-me apresentá-lo! O namorado da Gabi. O apressadinho Wagner, estudante de Direito, claro.

Agoniado num mix de excitação com vontade de foder, Zinho – um diminutivo para o apelido Wagnerzinho – pôs a mão na coxa da moça.

- Saaai, mininon! Que coisa. Quando bebe, parece que quer fazer em todo lugar... E outra: eu tô dirigindo. Não me atrapalhe mais.

- Ok, chefia.

Os meninos foram levados para casa. Literalmente, carregados para suas respectivas camas. Os pais tentaram dar bronca, mas ninguém ouvia. Estavam alcoolizados.

A namorada de Julinho, Ana Beatriz, de 13 anos, estava precisando ir ao hospital para tomar glicose. Ao invés disso, deram um suco para ela de açúcar com essência de morango. Então, acabou melhorando. Um pouco.

Zinho e Gabi voltaram para festa. Ficaram bêbados e vomitaram um no outro. Sem cuscuz ou morango pelo chão. E sem sexo pelas paredes. Somente o gosto de cabo de guarda-chuva na boca no dia seguinte.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Sangue fresco: o desabafo de um vampiro

Sangue fresco. Aprecio bastante o sangue dos homossexuais. O gemido deles ao sentirem meus caninos é bem mais excitante. E o líquido vermelho é muito mais doce. As histórias e boatos sobre vampiros são as mesmas; só mudam de lugar.

Sou diferente. Discreto como um psicopata ou um político brasileiro. Quando abocanho, é pra valer. Mas ninguém nota. E se o fizer, ‘dou notas’.

Sou bem-sucedido, é. Tenho uma rede de livrarias e já li de tudo sobre mim. Sobre vampiros e toda essa mitologia em torno de águas-bentas, alhos, estacas e Van Helsing – que é um filme muito bom, inclusive.

Os livros sugerem onde nasci. Os escritores mais arfantes, onde me criei, me formei, me revelei. Me submeti. Acabo de limpar a boca com minha camisa Polo branca. Ela está vermelha na borda da frente, porque me submeti ao meu destino. Sucumbi a ele. Sou da linhagem de Judas Iscariotes.

(Ao contrário do que foi ensinado a todo mundo, Judas não era um traidor. E não morreu. No Evangelho de Mateus, ele ‘trocou’ Jesus por 30 moedas e depois se enforcou. Conversa! Já no livro Atos dos Apóstolos – tudo isso no Novo Testamento, ok, pseudo-católicos? –, Judas, com o dinheiro ganho após entregar o filho do Homem para ir para a cruz, comprou um terreno e lá foi morar. Há quem diga que ele foi pelas bandas do Egito. E para provar que ele não se matou nem traiu ninguém, foi descoberto, em 1978, um rosário de papiros – 13 no total – que constam os ensinamentos do maior traidor da História injustiçado: “O Evangelho de Judas”, em uma caverna... no Egito. E para se ter um evangelho, era preciso ter... seguidores. Ele sabia dos planos de Jesus e o ajudou. Cristo então ressuscitou, mas de nada veio a adiantar. O mundo é uma beleza; o que estraga são essas pessoas que botam culpa no Diabo quando pecam.)

Bem, sou da linhagem de Judas. Estou dizendo... Chupo o sangue dos covardes e dos traidores – uma forma de ‘recompensar’ a má fama de meu antepassado judeu. Minha família era judia e fugiu para o Brasil à época da 2ª Guerra Mundial. Nos escondemos onde ninguém iria procurar um: no estado de Alagoas. A Terra dos Marechais.

Na verdade, eu ainda não tinha nascido. Minha mãe, Debra, me teve em Arapiraca, cidadezinha do interior. Hoje estou com 31 anos e pude ver o Brasil ser pentacampeão. Vou morreu aos 33, como Jesus – é a sina de todo vampiro da minha classe. (Nós nunca fomos imortais e não somos necessariamente da Transilvânia. Esqueça Bram Stoker e feche as janelas.) Mas a vida não é tão ruim. Eu não me alimento só de sangue. Então, brindemos com taças vermelhas!

Quem tenho em meus braços, é Amy, minha secretária que ninguém sabe que é travesti – por isso que disse que gostava de ‘sangue fresco’. Eu não julgo as pessoas. Só sei quem elas são. Isso se eu chupá-las bem. (Inclusive, eu adoro mulher na TPM!) Tenho o dom da iluminação pela genética, digamos.

Quando mordo alguém, tudo passa pela minha cabeça; todos os eventos daquela vítima, os vividos e os que ainda virão. Não, eu não as mato mais. Desde o ano de 2000 não o faço. O fator determinante sempre foi a quantidade de sangue sugado. As pessoas morrem porque perdem muito sangue – e não por causa da mordida em si. Escovo os meus dentes...

Minhas vítimas viram minhas testemunhas; acabam por se tornar minhas comparsas. Foi assim que me dei bem na vida. É assim que ainda funciona.

Amy acorda assustada. Eu rio. Na boca, dentes bem delineados com um toque avermelhado. Ela estranha. Põe a mão no pescoço – no lado esquerdo – e nada. Sente uma dor psicológica.

Eu, na prática, mordo o braço. (Que o melhor lugar pra ‘coletar’ sangue senão o pulso?!) Dessa forma, roubei tudo dela – tudo o que não pode ser tomado por nenhum assaltante-que-rouba-por-duas-pedrinhas-de-crack. Levo comigo todo o conhecimento de Amy; e seu segredo mais bem guardado na calcinha. Sei de todos os medos dela, desejos, fetiches, decepções, sonhos e toda a breguice por trás disso. Mas ninguém, de todas as pessoas que eu já mordi, tem medo de vampiros...

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Punhos de aço em ponta de faca

Preferia King Diamond a Stryper, se é que me entendem. Gostava de histórias de terror e não de contos de fadas. Já havia passado dessa fase de acreditar em tudo o que dissessem. Tirava agora suas próprias conclusões.

- Mãe, não quero mais ir à igreja...

Ele sabia onde isso ia terminar. Nada feito. Seus 12 anos não lhe davam moral alguma para argumentar o que fosse.

- Mas, pai, eu não gosto de jogar bola... Muito menos do Botafogo! Não quero essa camisa...

Ele sabia. Terminaria do jeito de sempre. Com ele, sozinho, trancado no quarto. Seu mundo era aquele, obscuro. Mas ele não era essencialmente mau.

Alguns psicólogos o examinaram por meio de desenhos. Primeiro, um castelo medieval, com direito a carrascos nas janelas. (Quem sabe, um dragão de três cabeças no calabouço...) Depois, uma borboleta. Negra. A transição da indefesa lagarta para o pomposo bicho voador.

E, por último, o inominável. Desenhou um demônio (Vixe, eu disse o nome!), talvez Beliel. Mas eram somente rabiscos.

- O que é isso?! – perguntou o psicólogo.
- É meu amigo imaginário. Ele dorme no meu armário. Na verdade, só quando eu arrumo minhas roupas direitinho. Ele gosta de espaço.
- Ele está aqui, agora?
- Do lado do senhor.

Matias engoliu seco. Começou a sentir uma leve brisa, como se da respiração da criatura. Era fria e não quente, como tinha imaginado antes. (Se os demônios vêm do inferno, que é quente, então até o bafo deveria na mesma temperatura, não?) Os olhos do psicólogo miraram a parede do seu lado esquerdo. Aquele ser deveria estar em sua forma invisível. Ou não. Essa era a mais natural de suas formas. Afinal, os “anjos da guarda” também não seriam invisíveis?!

“Que o meu me proteja!”, pensou Matias, imóvel.

Enquanto isso, o garoto ia colorindo com tons de vermelho e roxo. Os chifres estavam ganhando um acabamento especial.

- Doutor, e se eu te disser que tô só brincando...?

O psicólogo nada falou. Simplesmente se levantou e foi ao banheiro. Jogou água da pia no rosto. (Enganado por um merdinha desses...) Lavou as mãos e as enxugou. O nervosismo se esvaiu. Como a água pelo ralo. Quando deu meia volta, percebeu pela porta entreaberta que o desenho do garoto Bryan havia sido concluído. Pois, ao seu lado, estava Beliel. Em carne viva. (Estou delirando!) Uma carruagem de fogo, dois anjos, em vermelho.

- É esse o seu amigo?! – esforçou-se em falar, sem parecer tão assustado.
- Quem?! – perguntou o menino, olhando para os lados.

O mal confundia. O pesadelo não tinha hora pra acordar...

*

A jornada de trabalho era cansativa. Quase 12 horas por dia dirigindo um carro de uma empresa de comunicação. Ser motorista hoje em dia parecia algo fácil – ar condicionado, travas, vidros elétricos, mordomia. Não.

A vida era puro estresse. O trânsito não dava conta da paciência. Contrito, Bryan ia levando sua vida, sem perspectiva nenhuma. Muito menos de ir ao reino dos céus.

Seus 49 anos já pesavam em suas costas. Já havia esquecido toda aquela invenção de quando era pequeno. “Queria eu ter um demônio da guarda”, pensava ele. Mas o que seriam demônios, senão as vozes da razão perscrutando em nossa mente?

Mas e o que o corpo quer? Relaxar. O norte indica um bar qualquer na beira de uma rodovia estadual. Eram quase duas da madrugada e Bryan ainda estava com o carro do trabalho. Que se dane!

- Joel, me vê aí um filé com fritas... E, antes de mais nada, uma cerveja gelada.
Foi servido. Ia todo final de semana pra lá. Do nada, resolveu oferecer um pouco da sua batatinha pro rapaz da mesa ao lado, que estava sozinho.

- Oh, eu aceito. Com licença... Brigado.
Edinho era o apelido daquele que pegou o petisco. Um rapaz que geralmente frequentava aquele bar e usava uma droga ou outra de vez em quando. Mas a culpa não foi de nenhum entorpecente. Nem dele. Ele não era atrevido. Foi-lhe oferecido novamente e “brigadão! Hmmm, muito gostosa essa batata. Tô só esperando pelo meu caldinho de feijão”.

Nesse ínterim, Bryan, ainda sorridente, mas sem puxar conversa, se levantou e foi ao banheiro. Não era dos que fedem tanto. Era de um bar decente. A cozinha pelo menos o era. Isso era o que realmente importava. Nenhuma mosca ou rabo de rato na comida. É disso que eu tô falando...

Na volta, o motorista se depara com a cena: Edinho estava de pé, com um palito na mão. Ele tinha alcançado pelo menos umas três batatinhas – das grandes, porra! – e, na boca, mascava sem parar um pedaço suculento do filé que acompanhava as fritas. Ou seria o contrário.

- Ei, filhadaputa do caralho, que merda é essa?! Comendo do meu tira-gosto... Você pediu?!
- Mas eu pensei que eu...
- Pensou nada. Você tá achando que sou seu pai?
- Claro que não. Ele não seria um viado cheio de chiliques desses...
- Como é, rapazinho?!
- Além do mais, tu deve ser um corno contido. De aliança no dedo e bebendo nos cantos. Vai pra casa cuidar da tua mulher, filhadaputa do caralho!
- Ei, quem te chamou disso primeiro fui eu. Você pediu...

E foi pra cima dele. Parecia que Beliel estava a seu lado de novo, ele que é o rei da confusão, da desordem, da luxúria. (Não há nada que dê mais prazer que arrebentar um miserável desses!) É, Beliel estava com ele. Dentro dele. Os dois eram um só e o objetivo era claro.

Várias investidas foram dadas. Socos, pontapés, mesa com o resto do tira-gosto voando. O dono do bar interveio, quando notou que Edinho já havia levado três ou quatro cruzados de direita. No chão.

- Para com isso já, Bráia!
- Meu nome é... Bryaaaaaaaan!!! – disse ele, enquanto nas reticências cuidava de calar a boca do proprietário do estabelecimento com um murro daqueles.

Quando ele voltou para o páreo, Edinho tinha saído de onde estava. O dono do bar tinha lhe dado tempo. Era só correr, fugir pra longe da confusão. Talvez ele estivesse se arrependendo de ter chamando Bryan de viado e de corno. De filhadaputa do caralho, não.

Começou a correria pela rodovia, a AL-101 Norte, na região de Riacho Doce, em Maceió. Era dia 13 de fevereiro de 2014. Nada de sexta-feira. Isso seria mau agouro.

Era quinta-feira. Thursday. Ou ainda, dia de Thor. Quem ia lembrar dessa porra correndo? Não sei. Ele lembrou, não sei por quê. O que posso escrever mais, ora?

Edinho estava ofegante. Tava... quase sem... respirar direito. Mas a adrenalina o guiava. Atrás dele, de supetão, outra coisa o empurrava. Contundo, como que um trebouchet ao contrário – o impulso lhe levou pra baixo, de cara no asfalto já carcomido, precisando de ajustes aqui e ali.

Era Bryan no carro da empresa. Ele atropelou Edinho. Voltou. Passou de novo por cima do corpo, dando marcha à ré. E de novo, agora para frente. Pra frente como se estivesse passando por uma lombada física de ossos se quebrando.

A vítima não resistiu e morreu lá mesmo. Uma equipe médica viria, jornalistas tirariam fotos. Mas ninguém saberia da verdade.

Beliel saiu, cumprindo sua sina apocalíptica. E Bryan começou a chorar, com pé na embreagem. Ele gritava algo como “eu não sou corno! Não posso ser! Corno tem chifres...”.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Sem problemas

“Não há nada que um bom boquete não possa resolver”. Eu estava com essa frase na cabeça, apesar de não ser necessariamente um pervertido. Seria isso, um bom “serviço”, a solução de todos os nossos problemas?

Basicamente. As mulheres talvez não saibam o poder que tem em mãos. Ou na boca. Palavra! Os esforços voltados para o prazer e tudo o que não importa de verdade – naquele momento – se esvai em jatos brancos de prole indesejada.

E fim. Deitei na cama, depois de todas aquelas posições decoradas em filmes pornôs (É pra isso que eles servem, não?), olhando pro espelho em cima de nós.

- Vamos ter um desses, né? – ela sussurrou, enroscando o cabelo do meu peito.

- E uma banheira – eu disse. Sempre quis uma banheira. Tomar banho lendo é uma das minhas maiores curiosidades. Porque cagar, todo mundo caga. Cagar lendo, quero dizer.

Aí ligo pra recepção.

- Olá, senhor. Posso ajudá-lo em algo?

- Aqui é do quarto 32, como bem sabe. Você poderia ver quanto me custou, por favor? [...] R$ 45? Beleza. Vou pôr na caixinha.

O troco vem em duas notas de dois reais e um Halls do preto. Oh, ele é bom pra sexo oral... Gela tudo.

Mas é hora de ir. Levar a namorada em casa. (Porra, já são 3h45 da madrugada. Preciso acordar já, já pra trabalhar. Encarar aqueles moleques que não querem aprender merda nenhuma naquele colégio de freiras...) Ela, Antonieta, é argentina. Loira. Busto legal. Quadril normal. Pernas e derrière que eu vou lhe falar...

- Bem, enquanto você tá nessa avenida, vou lhe fazer um agrado. Mais um. Cadê você?! Kiniguiniguini! – brincou ela com meu pinto. Eu estava no meu Cross Fox e ela abrindo minha braguilha, de novo.

Começou a crescer a minha pulsação e aquele gosto de Halls só ajudava. Passei por um quebra-mola que nem percebi. Dois semáforos. O gozo veio, bem como um poste em minha direção.

Meu carro não era, digamos, completo. Tinha ar, trava e tal. Mas não tinha direção hidráulica, tampouco airbag. Talvez isso me salvasse da morte. Ou não.

Sem cinto de segurança, eu voei pelo parabrisa. Minhas calças ficaram no carro, junto com meus membros inferiores, acolchoando a cabeça morta de minha eterna namorada. Me senti leve, como se todos os problemas tivessem sido resolvidos de uma vez.

sexta-feira, 11 de março de 2011

A vida cheira a peidos úmidos (Editado)

A vida, sim, cheira a peidos úmidos. Naquele dia, eu cheirava a álcool. Se eu vomitasse no tanque do meu Gol Bola, acho que ficaria uma semana sem pôr gasolina. Fedia. Não a gasolina, nem a vida, mas o cigarro que eu acabara de acender.

Já ficava enjoado do gosto. Mas era bom ao mesmo tempo. Abri uma cerveja. A geladeira estava cheia delas. Minha mulher acorda, me perguntando onde eu andara a noite toda. Quem mulher pensa que é pra sair perguntando?


— Acordei agora, amor — disse eu.

— Esse cheiro de Halls preto no ar me diz algo.

— Que é o meu último. Nem me peça.

— Não me venha com essa...

— Tá bom. Tome um. Só dessa vez.

— Cínico! Você tá com bafo de cachaça... E passou a noite toda perambulando nos bares, não foi?

— Epa! Nada de cachaça. Isso é uísque com cerveja. Misturei por acaso. Não era minha intenção. E outra: eu tava num só bar a porra da noite toda — reverberei eu.

— Darrel, Darrel. Você não tem jeito — disse ela, fazendo cara de esposa que fala o sobrenome do marido.

— Homi, vá deitar! Você ainda tá com remela na cara, pelamorideus — sugeri. A propósito, não vou dizer meu primeiro nome. Não vou. Não gosto dele.

— Anselmo, vá se foder! — sugeriu também, Carol, minha mulher. — E me dê um gole dessa cerveja logo...


Quem mulher pensa que é pra sair mandando? Fico puto. A vida cheira a peido. Dessa vez, não úmido, afinal, esse saiu trovejante. Só que o cheiro era de quem tinha muito tira-gosto na barriga pra colocar no trono. Minha mulher me xingou de qualquer coisa e saiu com a mão no nariz. Quem mulher pensa que é pra sair reclamando? Foda.

Não é à toa que meu pai me aconselhava a nunca casar. Me lembro como ontem: “Meu filho, não case”. Saibas palavras. E ainda concluía: “Tô na merda, você sabe”. Eu sabia. Minha mãe era uma velha morta. Dona-de-casa simples. Não gostava de sair, tampouco de festas. Meu pai ia era raparigar. E com todo o direito. Sempre ouvi dele que o que não se acha em casa, pode-se encontrar na calada da noite. Algo assim.

Eu não. Meu negócio não era esse. Até porque Carol era um absurdo na cama. Parece que sabia o Kama Sutra de cor; coisa instintiva mesmo. Fizemos do “Chão de estrelas” até a “Cadeira de balanço”. Ah, não sei os nomes das posições. Mas sou bom nisso, apesar dos meus 31 anos já atrapalharem na flexibilidade — meu joelho ainda tava uma maravilha.

Carol era bancária e acordava sempre cedinho. Eu, digamos, estava descansando, no momento. Sabe como é, né? Muito estresse. Boas férias estas. Era terça-feira. Eu tava na verdade me tornando um alcoólatra. Ninguém precisa mais de professor de Literatura nas escolas. Isso o que eu era; um desnecessário.

Os alunos, sempre metidos a espertos, pesquisavam tudo na internet. Os resumos dos livros, tudo. Que bela merda! Mas eu tinha sido expulso, porque tinha chegado pela terceira vez de ressaca pra dar aula. Mentira, certo... Eu cheguei bêbado. Mas só foi uma vez. Juro!

Minha mulher saiu pro trabalho. Me deu um beijo na bochecha, antes de mais nada. Deixou ovo frito na panela. Eu não gostava muito. Já tinha ficado enjoado com o gosto. Mas era bom ao mesmo tempo. Não sei, talvez porque essa é a “comida do solteiro”. Bem, eu tava casado há dois anos. É, cometi esse erro. Mas Carol tinha seus floridos 24 anos e valia a pena estar com ela. Já falei dela na cama?!

Lembro vagamente que ainda tentei dar um cochilo. Porque realmente ia ser só um cochilo. Passei coisa de 29 horas acordado... Pra acordar do jeito que acordei... De um jeito que ninguém acorda... A corda vai se partir logo. Não tem nó que dê jeito.

*

Eu acordei de uma forma que ninguém que eu conheça acordou. Cambaleando, fui com sede até a geladeira. Estava totalmente atordoado. Peguei uma cerveja. Duas. Abri as duas. Bebi as duas. Uma de cada vez, claro.

Eu deveria ter bebido água, alguma coisa, alguma voz, algum sussurro dizia: “Beba água, viado!”. Mas eu achava tão bonitinho... que resolvia não obedecer. Mas não obedeci mesmo... É igual à ordem de esposa. Ninguém cumpre, mas acha fofinho. OK. Na verdade, eu tava muito puto.

Tinha acordado, ora. Eu deveria estar no décimo sétimo sono, senão no décimo oitavo. Resolvi colocar um Halls na boca. Preto. (Curioso, né? Por que o Halls preto é branco?!) Enquanto ele não se desmanchasse na minha boca, eu não tentaria dormir. Engasgar com um drops era a maior bobagem do mundo. Adormeci. Engasguei. Porra!


Ainda tentei cochilar. (Eu quero que minha Carol volte!) Só pensava em minha esposa. Nunca mais nós nos amamos. Nunca mais nós fizemos amorzinho gostoso, como ela costuma chamar. Nunca mais eu comi batata frita.


— Quer bem torrada?

— Mais ou menos — disse eu.

— Como assim?

Eu gosto dela marronzinha, a batatinha.

— Foda-se (um foda-se cordial)... Lave as panelas, se quiser.

— O que isso tem a ver?! Sou eu que vou fazer isso mesmo... — disse eu, pra mim mesmo, conformado.


Eu gosto de não me intrometer nessas coisas. Esses assuntos comigo mesmo... não têm futuro nunca. Não consigo concordar com isso ou aquilo aqui dentro de mim, às vezes. Por isso, não consigo me sentir em paz. Eu sou homem, ele, meu outro eu, é meio bicho.

*

Vou parar de fumar Camel. Vou parar de fumar. Pronto, parei. Decidi isso, apagando um cigarro que eu havia acendido sem avisar pra mim mesmo. De repente, me peguei acendendo outro. Mas era só pra ver se o maldito Halls preto derretia na boca.

Não vou parar de fumar. Não consigo. Essa merda é boa demais. Eu como bacon, como ovo, como miojo, como picanha, como gordura à fole (do francês nordestino, “aos montes”), como o que for. Vou morrer pela boca mesmo... Que seja pelo cigarro, pelo menos. Eu estava agoniado; parecia um mau pressentimento.

Deitei. Pensei na vida. Não tinha nada pra pensar. Nada que valesse a pena. Nada que eu lembrasse que valia a pena. Nada que eu lembrasse que podia valer a pena. Nada que... Nada que eu pudesse reclamar ainda mais. Fato. Tentei dormir. Me virava de um lado ao outro. (Ai, que travesseiro fofinho!) Mas nada de eu dormir... Levantei. Fui na geladeira. Peguei a garrafa d’água, despejei tudo na pia. Peguei uma cerveja, despejei tudo na garganta. Ou melhor, “depositei”. Depois disso, eu posso ir até dormir. Já pensou que sossego?! Que falta faz minha mulher agora. Ela faria batata frita do jeito que eu não gosto...

*

Mas não sei por que eu não conseguia pregar o olho. Mal lembrava que horas eram... (Deixe-me conferir no relógio da cozinha... Depois de alguns passos até lá, voltarei pra minha máquina de escrever.) Bem, já eram 10h! Devia haver alguma explicação pra isso.

E havia. Olhei de relance para o calendário 2004, atrás de mim, na geladeira. Era dia 13. Era dia 13 de agosto. Era sexta-feira 13 de agosto. Estava explicado. Senti um ar gélido nas minhas entranhas. Toda a minha ossatura se arrepiara só de pensar nesse dia, nesse mês. Não que houvesse acontecido comigo nada de significante especificamente nesse dia, mas, porra, era sexta-feira 13! E em agosto!

Como todos sabem, a tal sexta-feira 13 é tida como o dia do azar. E agosto é um mês de mau agouro. Não sei o porquê disso direito, mas meu pai morreu em agosto; Getúlio Vargas se matou; as bombas estadounidenses atingiram Hiroshima e Nagasaki; e por aí vai. Esse pavor todo tinha explicação.

Tenho paraskevidekatriafobia. Traduzindo pro português, tenho parascavedecatriafobia. Fobia desse dia, em específico. As pessoas dizem que a sexta-13, vinculada ao mês de agosto, teria alguma ligação com as bruxas. (Minha casa está sempre suja. Odeio vassouras!)

Até no Tarô, o número 13 representa a Morte! Porra, isso me persegue. Há sexta-feira 13 todo ano – pelo menos uma vezinha. Mas eu não queria ter esse medo... Essa crença no azar desse dia maldito começou no século 19 e se intensificou no 20 – pelo menos uma vezinha não deu 13, né?

Na verdade, às 13h daquele dia, algo não muito agradável iria acontecer. E meu medo aumentaria. O pânico tomaria conta de mim e, enfim, viria uma ira descontrolada, explodindo como uma bomba de São João. E eu não saberia tomar qualquer decisão séria, usando somente o recurso racional. E não falaria nada inteligível aos ouvidos humanos e sãos.

*

Fui pra cama. De repente, não me sentia no todo. Acho que eu estava apagando de vez, pra ficar coisa de cinco dias dormindo. E cinco noites, claro. Minhas antenas mesmo assim ainda estavam ligadas. Percebi raios catódicos e cognitivos passeando entre meus hemisférios. Parecia que minha mente estava sendo fatiada bem lentamente e em fatias bem modestas – como numa ressonância magnética.

Carol me falava que sempre desejou ficar em transe e conhecer outras galáxias ou mesmo a Nebulosa de Órion – não lembro direito. Eu vagamente ouvi falar dessas experiências; imagine de EQM... Experiência de Quase Morto, como dizem. Tive a sensação de ficar mais leve.

Era a minha alma se dissipando. Ainda dessa forma eu tinha a consciência de que eu existia e tinha um papel no mundo das ideias, logo adiante. Nunca acreditei muito em Deus, mas agora sentia a mão do Criador puxando meus cabelos e chegando mais perto pra conferir meu bafo de álcool. Ele, um sujeito deveras iluminado, se afastou logo. (Acho que ele não gosta de cerveja nem uísque... o negócio dele mesmo é vinho!)

Deus era mais pra um espírito albino sem olhos do que o velhinho de longas madeixas e barba brancas que sempre achei que poderia ser. Afinal, é o que todos pensam dele. Quem lá sabe se o diabo é vermelho...

Nesse meio tempo, consegui ver, mesmo com o ambiente clareando demais, (Devia ter fechado a porra da cortina!) que algo um tanto transparente flutuava logo acima de mim. Era meu espírito.

Eu estava lindo. Um pouco gordinho, mas uma coisa divina. Sem olheira, com a barba feita, tomado banho. No entanto, como eu conseguia pensar, se meu espírito estava fora de mim? (“Ele está fora de si!”) Podiam pensar que eu estava ficando louco. Isso só podia ser um sonho. Tinha de ser!

Eu já estava começando a entrar em pânico. Quando me dei por mim, não conseguia me mexer. Nem uma mecha do cabelo pré-grisalho sequer. Foi aí que entendi o que aquilo em cima de mim, nadando no ar, queria.

Debruçou-se sobre mim, pra lá e pra cá – me assustei um pouco. Ele me fez sinal pra esperar, resmungando que não iria me machucar, afinal de contas, eu era ele. Me perguntei se meu clone sobrenatural tinha os mesmos medos, os mesmos desejos, além das feições.

Ele foi se afastando, com destino certo. (Vou morrer aqui nesse lugar e vai ser agora!) Minha pupila estava meio dilatada e o meu espírito, desfocado. Chegou à geladeira, abriu aquela Brastemp branca velha cheia de cerveja em lata e tirou uma. Minh’alma abriu enfim o líquido e bebericou. (Que porra é essa?!) Fiquei feliz e ao mesmo tempo todo estranho.

Beber depois da morte era algo que me deixava curioso. Que gosto teria? Haveria aquele frenesi nas nossas veias? Por que a cerveja não caia simplesmente no chão, já que aquilo ali à minha frente era somente uma alma penada? Como é que...

Como é que eu voltei a mim mesmo? Só agora acordei. Era um sonho. (Tinha sido mesmo?!) Decidi parar de beber pra sempre. O medo da morte bateria à porta sempre que olhasse para alguma bebida alcoólica e... E eu queria viver. Quero.

*

Carol chegou do trabalho – eu ainda estava muito cansado; tinha dormido muito pouco. Dei a notícia:

— Parei de fumar!

— Que bom, amor! Vou poder beijar na sua boca agora — brincou ela.

— Não, não. Parei de beber...

— Hã? Não acredito!

— Tive uma experiência muito caótica enquanto você estava trabalhando e decidi parar com essa merda. Ficar cheirando a cachorro sarnento não é lá muito agradável... Eu nem fico mais bêbado!

— O que aconteceu?

— Nada. Só não quero mais beber nem tocar no assunto.

— Por quê?

— Fiquei com medo.

— Que dia é hoje?! — Ela fez cara de surpresa. As maçãs do rosto foram crescendo, crescendo. Abriu o sorrisão que só ela... — É dia 13. Sexta-feira 13!

— Pare! — Aquilo sem nome foi tomando conta de mim.

— É sexta 13... Mas você, hein? Um homem desse tamanho... Com medo de um diazinho qualquer...

— Não é, não. Eu tenho pavor!

— Deixe de besteira, amor.

— Amor, o caralho!

— Errr. — Carol tinha na feição do que se chama de “O quê, rapaz?!”. Ela ruminou um pouco, não conseguindo engolir aquele insulto. — Não fale assim comigo...

— Se foda! — Peguei uma faca cerrada em cima da pia e fui atrás dela. Me sentia bem com isso. Era uma sensação nova. Carol não acreditava no que via. Estávamos “conversando” na cozinha e ela saiu correndo em direção à sala.

— Fique longe de mim, seu doido, filho da puta!

— Venha cá, sua vaca. Vou lhe mostrar o medroso!

Segui na direção dela, com a ira transbordando nos olhos. Parecia mais um pitbull atrás de um gato siamês manco ou uma cadela no cio. Ela tinha tropeçado na mesinha de centro – a canela dela latejava. (E a cadela latia!) Gritava palavrões inaudíveis pra mim, que estava fora de meu estado normal. (Minha alma realmente voltara pra mim? Sou um ser sem alma agora! Vou cortar o pescoço dessa puta!)


— Chegue pra cá, meu bem! Venha sentir a porra da lâmina na sua barriga!

— Eu estou grávida, Darrel!


Aquelas palavras não tinham sabor algum. Nos ouvidos, só ouvia o meu próprio batimento cardíaco acelerado, dominando as minhas têmporas. Foi aí que ela, dando a volta pelo sofá-cama salmão, tropeçou na mesinha de centro de novo, pegou o narguilé caído e jogou com uma precisão cirúrgica no meu rosto. O vidro dilacerou meu lado direito, logo abaixo do queixo. Fiquei grogue, mas ainda dei uma facada superficial no braço que ela jogara o objeto.

A casa estava se movendo rápido. Era eu caindo no chão. Havia sangue – só não sabia se era todo meu. Na queda, meu pescoço quebrou na bendita mesinha de centro da sala. Carol, um pouco afastada, sentou no tapete e começou a chorar com uma mão na barriga. (O bebê! O meu filho!) Apaguei. Finalmente pude ver minha alma. Ela estava na cozinha, o tempo todo. Estava bebendo as minhas cervejas de novo. Fiquei puto e esqueci do bebê. Aquele era eu-alcoólatra. E eu agora era um bicho.

Quando ela, a alma, retornou, senti uma vibração. Comecei a chorar desacordado. Minhas lágrimas inundaram o tapete ensanguentado e minha mulher pode perceber. Parou de chorar. Veio até mim e fez carícias.


— Seu merda, eu te amo! Mesmo assim. Não morra...


(Eu também te amo! Mas não num dia 13...) Eu já estava morto. Mas não sabia por que minha alma tinha voltado. Esse agora era o meu lugar, pra sempre. Eu teria então a minha própria casa mal-assombrada. A corda da vida tinha se partido. E eu também.

Cara nova

Com ares mais novos, com cheirinho de lavanda Johnson's. É assim que sinto o meu blog e essa minha nova fase. Mudei o título que era Feixe de Rock pra Bruno com é, como vocês devem ter notado. Talvez por só me chamarem por esse nome - nada contra, mas o meu é com a letra é, porra.
Avesso à vida moderna, acho que me entupi de estresse e falta de inspiração - ou pelo menos de tempo - e decidi que, mesmo assim, vou espremer o máximo possível dessa massa cinzenta que o deus Thor me deu.
Besteiras à parte, a verdade é que pretendo colocar aqui muito mais de mim e ser (mais) fiel ao leitor, que mal conheço. Todo escritor acha que conhece quem o lê. Mas é muito difícil fazer um perfil adequado. Prefiri seguir pela trilha mais incômoda.
Como de costume, não gosto de caminhar senão pelo vale das sombras e minha literatura aponta o dedo pra lá, mesmo sabendo que não sei o final de nenhum conto ou nenhuma crônica ou nenhum poema ou nenhuma merda ou merda nenhuma. E pra que vírgula?
Serei assíduo e espero que vocês também. (O texto, danado, não quer ter parágrafos...)

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

A vida cheira a peidos úmidos (Epílogo)

Leitor paciente, leia aqui antes de mais nada:

*
Fui pra cama. De repente, não me sentia no todo. Acho que eu tava apagando de vez, pra ficar coisa de cinco dias dormindo. E cinco noites, claro. Minhas antenas mesmo assim ainda estavam ligadas. Percebi raios catódicos e cognitivos passeando entre meus hemisférios. Parecia que minha mente estava sendo fatiada bem lentamente e em fatias bem modestas – como numa ressonância magnética.

Carol me falava que sempre desejou ficar em transe e conhecer outras galáxias ou mesmo a Nebulosa de Órion; não lembro direito. Eu vagamente ouvi falar dessas experiências; imagine de EQM... Experiência de Quase Morto, como dizem. Tive a sensação de ficar mais leve.

Era a minha alma se dissipando. Ainda dessa forma eu tinha a consciência de que eu existia e tinha um papel no mundo das ideias, logo adiante. Nunca acreditei muito em Deus, mas agora sentia a mão do Criador puxando meus cabelos e chegando mais perto pra conferir meu bafo de álcool. Ele, um sujeito deveras iluminado, se afastou logo. (Acho que ele não gosta de cerveja nem uísque... o negócio dele mesmo é vinho!)

Deus era mais pra um espírito albino sem olhos do que o velhinho de longas madeixas e barba brancas que sempre achei que poderia ser. Afinal, é o que todos pensam dele. Quem sabe se o diabo é lá vermelho...

Nesse meio tempo, consegui ver, mesmo com o ambiente clareando demais, (Devia ter fechado a porra da cortina!) que algo um tanto transparente flutuava logo acima de mim. Era meu espírito.

Eu estava lindo. Um pouco gordinho, mas uma coisa divina. Sem olheira, com a barba feita, tomado banho. No entanto, como eu conseguia pensar, se meu espírito estava fora de mim? (“Ele está fora de si!”) Podiam pensar que eu estava ficando louco. Isso só podia ser um sonho. Tinha de ser!

Eu já estava começando a entrar em pânico. Quando me dei por mim, não conseguia me mexer. Nem uma mecha do cabelo pré-grisalho sequer. Foi aí que entendi o que aquilo em cima de mim, nadando no ar, queria.

Debruçou-se sobre mim, pra lá e pra cá – me assustei um pouco. Ele me fez sinal pra esperar, resmungando que não iria me machucar, afinal de contas, eu era ele. Me perguntei se meu clone sobrenatural tinha os mesmos medos, os mesmos desejos, além das feições.

Ele foi se afastando, com destino certo. (Vou morrer aqui nesse lugar e vai ser agora!) Minha pupila estava meio dilatada e o meu espírito, desfocado. Chegou à geladeira, abriu aquela Brastemp branca velha cheia de cerveja em lata e tirou uma. Minh’alma abriu enfim o líquido e bebericou. (Que porra é essa?!) Fiquei feliz e ao mesmo tempo todo estranho.

Beber depois da morte era algo que me deixava curioso. Que gosto teria? Haveria aquele frenesi nas nossas veias? Por que a cerveja não caia simplesmente no chão, já que aquilo ali à minha frente era somente uma alma penada? Como é que...

Como é que eu voltei a mim mesmo? Só agora acordei. Era um sonho. Tinha sido mesmo?! Decidi parar de beber pra sempre. O medo da morte bateria à porta sempre que olhasse para alguma bebida alcoólica e... E eu queria viver. Quero.

Carol chegou do trabalho – eu ainda estava muito cansado; tinha dormido muito pouco. Dei a notícia:

— Parei de fumar!

— Que bom, amor! Vou poder beijar na sua boca agora — brincou ela.

— Não, não. Parei de beber...

— Hã? Não acredito!

— Tive uma experiência muito caótica enquanto você estava trabalhando e decidi parar com essa merda. Ficar cheirando a cachorro sarnento não é lá muito agradável... Eu nem fico mais bêbado!

— O que aconteceu?

— Nada. Só não quero mais beber nem tocar no assunto.

— Por quê?

— Fiquei com medo.

— Que dia é hoje?! — Ela fez cara de surpresa. As maçãs do rosto foram crescendo, crescendo. Abriu o sorrisão que só ela... — É dia 13. Sexta-feira 13!

— Pare!

— É sexta 13... Mas você, hein? Um homem desse tamanho... Com medo de um diazinho qualquer...

— Não é, não. Eu tenho pavor!

— Deixe de besteira, amor.

— Amor, o caralho!

— Errr. — Carol tinha na feição do que se chama de “O quê, rapaz?!”. Ela ruminou um pouco, não conseguindo engolir aquele insulto. — Não fale assim comigo...

— Se foda! — Peguei uma faca cerrada e fui atrás dela. Me sentia bem com isso. Era uma sensação nova. Ela não acreditava no que via. Estávamos “conversando” na cozinha e ela saiu correndo em direção à sala.

— Fique longe de mim, seu doido, filho da puta!

— Venha cá, sua vaca. Vou lhe mostrar o medroso!

Segui na direção dela, com a ira transbordando nos olhos. Parecia mais um pitbull atrás de um gato siamês manco. Ela tinha tropeçado na mesinha de centro – a canela dela latejava. (E a cadela latia!) Gritava palavrões inaudíveis pra mim, que estava fora de meu estado normal. (Minha alma realmente voltara pra mim? Sou um ser sem alma agora! Vou cortar o pescoço dessa puta!)

— Chegue pra cá, meu bem! Venha sentir a porra da lâmina na sua barriga!

— Eu estou grávida, Darrel!

Aquelas palavras não tinham sabor algum. Nos ouvidos, só ouvia o meu próprio batimento acelerado, dominando as minhas têmporas. Foi aí que ela, dando a volta pelo sofá-cama salmão, tropeçou na mesinha de centro de novo, pegou o narguilé caído e jogou com uma precisão cirúrgica no meu rosto. O vidro dilacerou meu lado direito, logo abaixo do queixo. Fiquei grogue, mas ainda dei uma facada no braço que ela jogara o objeto.

A casa estava se movendo rápido. Era eu caindo no chão. Havia sangue – só não sabia se era todo meu. Na queda, meu pescoço quebrou na bendita mesinha de centro da sala. Carol, um pouco afastada, sentou no tapete e começou a chorar com uma mão na barriga. (O bebê! O meu filho!) Apaguei. Finalmente pude ver minha alma. Ela estava na cozinha, o tempo todo. Estava bebendo as minhas cervejas de novo. Fiquei puto e esqueci do bebê. Aquele era eu-alcoólatra. E eu agora era um bicho.

Quando ela, a alma, retornou, senti uma vibração. Comecei a chorar desacordado. Minhas lágrimas inundaram o tapete ensanguentado e minha mulher pode perceber. Parou de chorar. Veio até mim e fez carícias.

— Seu merda, eu te amo! Mesmo assim. Não morra...

(Eu também te amo! Mas não num dia 13...) Eu já estava morto. Mas não sabia por que minha alma tinha voltado. Esse agora era o meu lugar, pra sempre. Finalmente eu teria a minha própria casa mal-assombrada.