quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

A vida cheira a peidos úmidos (Epílogo)

Leitor paciente, leia aqui antes de mais nada:

*
Fui pra cama. De repente, não me sentia no todo. Acho que eu tava apagando de vez, pra ficar coisa de cinco dias dormindo. E cinco noites, claro. Minhas antenas mesmo assim ainda estavam ligadas. Percebi raios catódicos e cognitivos passeando entre meus hemisférios. Parecia que minha mente estava sendo fatiada bem lentamente e em fatias bem modestas – como numa ressonância magnética.

Carol me falava que sempre desejou ficar em transe e conhecer outras galáxias ou mesmo a Nebulosa de Órion; não lembro direito. Eu vagamente ouvi falar dessas experiências; imagine de EQM... Experiência de Quase Morto, como dizem. Tive a sensação de ficar mais leve.

Era a minha alma se dissipando. Ainda dessa forma eu tinha a consciência de que eu existia e tinha um papel no mundo das ideias, logo adiante. Nunca acreditei muito em Deus, mas agora sentia a mão do Criador puxando meus cabelos e chegando mais perto pra conferir meu bafo de álcool. Ele, um sujeito deveras iluminado, se afastou logo. (Acho que ele não gosta de cerveja nem uísque... o negócio dele mesmo é vinho!)

Deus era mais pra um espírito albino sem olhos do que o velhinho de longas madeixas e barba brancas que sempre achei que poderia ser. Afinal, é o que todos pensam dele. Quem sabe se o diabo é lá vermelho...

Nesse meio tempo, consegui ver, mesmo com o ambiente clareando demais, (Devia ter fechado a porra da cortina!) que algo um tanto transparente flutuava logo acima de mim. Era meu espírito.

Eu estava lindo. Um pouco gordinho, mas uma coisa divina. Sem olheira, com a barba feita, tomado banho. No entanto, como eu conseguia pensar, se meu espírito estava fora de mim? (“Ele está fora de si!”) Podiam pensar que eu estava ficando louco. Isso só podia ser um sonho. Tinha de ser!

Eu já estava começando a entrar em pânico. Quando me dei por mim, não conseguia me mexer. Nem uma mecha do cabelo pré-grisalho sequer. Foi aí que entendi o que aquilo em cima de mim, nadando no ar, queria.

Debruçou-se sobre mim, pra lá e pra cá – me assustei um pouco. Ele me fez sinal pra esperar, resmungando que não iria me machucar, afinal de contas, eu era ele. Me perguntei se meu clone sobrenatural tinha os mesmos medos, os mesmos desejos, além das feições.

Ele foi se afastando, com destino certo. (Vou morrer aqui nesse lugar e vai ser agora!) Minha pupila estava meio dilatada e o meu espírito, desfocado. Chegou à geladeira, abriu aquela Brastemp branca velha cheia de cerveja em lata e tirou uma. Minh’alma abriu enfim o líquido e bebericou. (Que porra é essa?!) Fiquei feliz e ao mesmo tempo todo estranho.

Beber depois da morte era algo que me deixava curioso. Que gosto teria? Haveria aquele frenesi nas nossas veias? Por que a cerveja não caia simplesmente no chão, já que aquilo ali à minha frente era somente uma alma penada? Como é que...

Como é que eu voltei a mim mesmo? Só agora acordei. Era um sonho. Tinha sido mesmo?! Decidi parar de beber pra sempre. O medo da morte bateria à porta sempre que olhasse para alguma bebida alcoólica e... E eu queria viver. Quero.

Carol chegou do trabalho – eu ainda estava muito cansado; tinha dormido muito pouco. Dei a notícia:

— Parei de fumar!

— Que bom, amor! Vou poder beijar na sua boca agora — brincou ela.

— Não, não. Parei de beber...

— Hã? Não acredito!

— Tive uma experiência muito caótica enquanto você estava trabalhando e decidi parar com essa merda. Ficar cheirando a cachorro sarnento não é lá muito agradável... Eu nem fico mais bêbado!

— O que aconteceu?

— Nada. Só não quero mais beber nem tocar no assunto.

— Por quê?

— Fiquei com medo.

— Que dia é hoje?! — Ela fez cara de surpresa. As maçãs do rosto foram crescendo, crescendo. Abriu o sorrisão que só ela... — É dia 13. Sexta-feira 13!

— Pare!

— É sexta 13... Mas você, hein? Um homem desse tamanho... Com medo de um diazinho qualquer...

— Não é, não. Eu tenho pavor!

— Deixe de besteira, amor.

— Amor, o caralho!

— Errr. — Carol tinha na feição do que se chama de “O quê, rapaz?!”. Ela ruminou um pouco, não conseguindo engolir aquele insulto. — Não fale assim comigo...

— Se foda! — Peguei uma faca cerrada e fui atrás dela. Me sentia bem com isso. Era uma sensação nova. Ela não acreditava no que via. Estávamos “conversando” na cozinha e ela saiu correndo em direção à sala.

— Fique longe de mim, seu doido, filho da puta!

— Venha cá, sua vaca. Vou lhe mostrar o medroso!

Segui na direção dela, com a ira transbordando nos olhos. Parecia mais um pitbull atrás de um gato siamês manco. Ela tinha tropeçado na mesinha de centro – a canela dela latejava. (E a cadela latia!) Gritava palavrões inaudíveis pra mim, que estava fora de meu estado normal. (Minha alma realmente voltara pra mim? Sou um ser sem alma agora! Vou cortar o pescoço dessa puta!)

— Chegue pra cá, meu bem! Venha sentir a porra da lâmina na sua barriga!

— Eu estou grávida, Darrel!

Aquelas palavras não tinham sabor algum. Nos ouvidos, só ouvia o meu próprio batimento acelerado, dominando as minhas têmporas. Foi aí que ela, dando a volta pelo sofá-cama salmão, tropeçou na mesinha de centro de novo, pegou o narguilé caído e jogou com uma precisão cirúrgica no meu rosto. O vidro dilacerou meu lado direito, logo abaixo do queixo. Fiquei grogue, mas ainda dei uma facada no braço que ela jogara o objeto.

A casa estava se movendo rápido. Era eu caindo no chão. Havia sangue – só não sabia se era todo meu. Na queda, meu pescoço quebrou na bendita mesinha de centro da sala. Carol, um pouco afastada, sentou no tapete e começou a chorar com uma mão na barriga. (O bebê! O meu filho!) Apaguei. Finalmente pude ver minha alma. Ela estava na cozinha, o tempo todo. Estava bebendo as minhas cervejas de novo. Fiquei puto e esqueci do bebê. Aquele era eu-alcoólatra. E eu agora era um bicho.

Quando ela, a alma, retornou, senti uma vibração. Comecei a chorar desacordado. Minhas lágrimas inundaram o tapete ensanguentado e minha mulher pode perceber. Parou de chorar. Veio até mim e fez carícias.

— Seu merda, eu te amo! Mesmo assim. Não morra...

(Eu também te amo! Mas não num dia 13...) Eu já estava morto. Mas não sabia por que minha alma tinha voltado. Esse agora era o meu lugar, pra sempre. Finalmente eu teria a minha própria casa mal-assombrada.

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