quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Ensaio sobre a bebedeira

— Tira a vodca do freezer!

— Por quê?!

— Porque senão congela, pô.

— Álcool congelando? Tá doida?! Já vi que mulher não entende nada de bebida mesmo...


Bem, se esse rapaz tinha alguma pretensão de paquerar essa garota ao longo da noite, é bom ele desistir. No mais, ele falou com um sorrisinho irônico, franzindo o cenho. A moça, contrariada, levou na esportiva. Realmente é um pouco difícil congelar o álcool etílico, se é que vocês me entendem.


Na verdade, pra que isso aconteça, é necessária uma temperatura de -117,3 graus Celsius. Nenhuma geladeira ou freezer consegue essa façanha. É preciso mergulhá-lo no nitrogênio líquido a 192 graus negativos para congelá-lo de fato. Há um tipo de álcool que fica sólido na temperatura ambiente e é usado pelo Exército em certas atividades, mas isso não vem ao caso.


— Olhe, você deixe de preconceito, ok?

— Só falei brincando... você sabe. Vamos levar a bebida pra mesa logo!

— Certo. E a Sprite?

— Não. Traga a Fanta primeiro!


É sempre assim. A bebida é rodeada pela amizade. Ou será o contrário? O que é certo é o que a bebida faz conosco. Sim, eu sei. Essa frase ficou um tanto vaga. E é assim como ficamos ao ingerirmos qualquer bebida alcoólica; atônitos, sem saber o que é certo. E, às vezes, mesmo sabendo o que é errado, o fazemos. Esse é o nosso alterego — o nosso Mr. Hyde d’O Médico e o monstro de Stevenson.


É a mais pura verdade. Quando bebemos, mostramos o nosso lado B. O que somos não é o que mostramos à flor da pele. Guardamos segredos. Todos os têm. (Os homossexuais enrustidos sabem bem do que se trata.) Alguns guardam sua verdadeira identidade em seus guardarroupas do inconsciente, outros, ódio sem motivo aparente.


— Eh, chegou a birita! Traz essa vodca aqui, John.

— João, por que te chamam de John? — perguntou Alice, curiosa.

— Acho que porque gosto de rock internacional. Só frescura do Neto.

— Que nada, rapaz. É que ele é gay. Todos sabem — e todos riram, menos John, digo, João. — Eu quero ficar feliz! Eu quero é beber! Bote aqui uma dose...


É engraçado pensar assim. Todos nós pensamos que o álcool vai nos deixar mais alegres ou algo parecido. Não. Definitivamente. Se tomarmos pouco, até que faz um efeito animador. Mas é só umas doses a mais que nosso corpo já sente. Na verdade, o álcool inibe a corrente elétrica em células nervosas. E estimula a absorção de receptores pra neurotransmissores inibidores como o ácido gama-aminobutírico.


Ei, não precisa pôr no Wikipédia pra saber do que tô falando. Em português, isso quer dizer que o álcool é um inimigo do nosso bem-estar, bom-humor e coordenação. Quando a vodca que o Neto está bebendo, invadir sua corrente sanguínea (em cerca de uma hora), logo o álcool entrará no cérebro e atrapalhará as funções do cerebelo, por exemplo, que é responsável pelos músculos. Pronto, leitor, é por isso que você fica um pouco dormente, quando bebe um bocado.


— Vei, para de beber, Neto! Você vai acabar bêbado...

— John, porra! Minha namoooooooorada me traiu... há um mês

— disse ele com dificuldade; a língua um pouco pesada. — Vamos prum bar agora.

— Não, você não tá em condições!

— Tô nem aí. Queeeeer saber? Eu... vou só! — engolindo a saliva com vodca, exatamente nas reticências.


Pois bem. É aí que o papel da amizade mostra-se firme. Os amigos o acompanham pra mais essa jornada. Eles sabem que discutir com alguém bêbado é inútil — todo mundo sabe. O intrigante é saber que o álcool, de algum modo, nos inibe de qualquer vergonha. Paqueramos qualquer mulher. É como se fosse algo instintivo. Não importa se ela é feia ou a mais bonita do bar. Nossa natureza exige um parceiro reprodutor.


— Charles, vem cá! Oh, John chama esse garçom aí. Chama, viado!

— Calma. Que agonia, oxe! Ei, chefia...

— Pois não — disse o garçom, prontamente. — Ora, vejam só quem tá aqui: Netinho, meu chapa! Tudo bem? Aproveitando a noite livre da namorada pra tomar uma com os amigos, né?

— Tudo tranquilo! Melhor agora que tô sem patroa. Não faça essa cara. Acabei com Dayse. Num dava certo, não. Ela é paranoica. — E olhando pro cardápio, apontou num prato qualquer e olhou rapidamente para a mesa da frente. — Eu quero uma porção de galegas dessa! — reverberou ele, paquerando descaradamente. Todos riram, até o garçom Charles que disse “É pra já!”.


Intrigante (mesmo) como todo bêbado é entendedor de qualquer assunto. De futebol a música. De política a comportamento. De Timbalada a Sepultura... parece mais um taxista. Eis que surge um diálogo casual na mesa de bar:


— Quero que aquela safada morra! Eu não...

— Vamos mudar de assunto, né, Neto? Por favor. Você falou a noite toda dessa sua ex. Já sabemos que ela não presta — declarou Alice, interrompendo ele, que fez cara feia.

— Ei, não fale assim dela. Só eu quem posso!

— Tá bom! — disse João, rindo. — Vocês não acham uma safadeza esse novo acordo da língua portuguesa?


Mesmo bêbado, Neto afirmou:

— Pior pra Portugal. Lá é que vai mudar muuuuuuita coisa!

— Como você sabe?

— Eu andei lendo... além disso, o português de lá é muito feio. Tem que ficar mais sexy. Sei lá, acho que eu brocharia com uma portuguesa com aquele sotaque ridículo no meu ouvido.

— Ave Maria. Vocês, homens, só pensam nisso! E nem é feio o sotaque... — disse Alice, com ar de indiferença.

— Olhe o preconceito você agora! — declarou João. — Eu não penso só nisso... penso em mulher também.

— Ó, Alicinha! Eu não disse que ele era gay? Ele pensa em homem, quando se fala em sexo, mas em mulher também... só que em segundo caso! Vem cá, me dá um selinho — pediu Neto, fazendo cara de cachorro molhado bêbado.

— Oh, seu bosta, eu só falei aquilo pra parecer um pleonasmo! Você não sabe nada de português, né?

— Sei sim.

— Pois voltando ao assunto do português, acho que não vou me acostumar nem tão cedo com esses detalhes que mudaram.

— Eu também — disse João, com um meio riso. — Neto, bora ver se você se sai bem: agora, a palavra “autoestrada” tem hífen ou não? — perguntou, dando uma piscadinha para Alice.

— Rapaz, acho que não tem mais, não. Tiraram o hífen de quase tudo!

— Acertou! É impressão minha ou você quando misturou vodca com a cerveja aqui do bar ficou menos bêbado? — perguntou João, às risadas. — Isso é impossível...

— Porra, tô mijando de rir aqui — declarou Neto, irônico. — Na hora que eu fui no banheiro, pedi um cafezinho ao Charles. Ajuda muito nessas horas...

— Deixa eu te perguntar de novo. A palavra... Ei, Charles, me traz um caldinho de sururu, na moral! Cinco minutinhos, né? Beleza! Sim, é... sim, a palavra “enjoo” perde ou não o acento? Quero ver você acertar essa, sabe-tudo!


Neto não pensou duas vezes:

— Eu não sei. Afinal, não estou grávido!

Todos riram. Até as galegas da mesa ao lado que ouviram tudo “sem querer”.


Um salve aos chineses que “inventaram” a bebida alcoólica há 10 mil anos atrás! Algum amarelo daqueles descobriu que era possível reaproveitar as sementes das plantas. Resultado: drinques feitos de arroz, uvas, mel e cereja — tudo fermentado. O prazer por ingerir álcool vem desde os primatas, que comiam frutas fermentadas do chão. Nosso desejo pela bebida é intrínseco. Não vem exclusivamente de propagandas com mulheres com silhuetas sinuosas.


Se não fosse a bebida, não estaríamos onde nos encontramos. Ela ajudou a enfrentar epidemias, avançar pelo mundo afora e inventar tecnologias para o cotidiano. Parece tolice, mas ela quem fez existir as pirâmides do Egito, os EUA e até o feminismo. Mas o que mais nos comove é quando um amigo nosso chega e infere o clichê dos clichês:


— Você é como se fosse um irmão pra mim! — diz Neto, com o bafo de... tudo misturado e o braço a fazer um ângulo de 45º, cingindo o pescoço de João. E logo agarra Alice e proclama: — Quero ser o padrinho do filho de vocês. Sei que vocês se gostam... Eu gosto de criança, pô!


E amanhã é só mais uma ressaca...

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

O celular

Amaury era um homem ciente de suas responsabilidades em casa: trabalhava pra sustentar a família e ainda sabia um pouco de eletrônica — quando algum aparelho quebrava, lá estava ele.

— Querida, não ligue mais o liquidificador no estabilizador do PC. Por isso que não pega! A voltagem é diferente. Os ampères são...
— Tá bom, tá bom! Já entendi — respondeu ela com ar de inútil.

Ele era um homem muito ocupado. Era corretor de imóveis. Ela, dona-de-casa-que-não-perde-um-dia-sequer-o-programa-da-Ana-Maria-Braga. Dona Marta era uma dona bem conservada, diga-se de passagem. Fazia de tudo pra agradar seu homem. Isso era fato, porque a barriga de Amaury aumentava como se ele bebesse todo final de semana. E ele bebia. Ou seja, não eram somente as receitas novas de dona Marta as responsáveis.

— Querida, vou à casa de um amigo acertar uns contratos. Volto... logo! — disse ele, beijando-a na testa, logo ali nas reticências.
— Tá bom! — respondeu ela, enxugando o liquidificador.

Dona Marta percebeu que faltava tomate pra salada. Foi até seu celular e ligou para o marido. “Ele nunca compra tomate suficiente. Vou mandar ele deixar fiado no mercadinho mesmo. Não posso sair do fogão”, pensou ela ao digitar em seu aparelho móvel que tinha até TV embutida — necessidade não havia, afinal, ela passava o dia todo em casa.

O marido logo voltou pra casa. Sem o celular, inclusive.
— Amaury, onde tá seu celular? Liguei, liguei, liguei e nada...
— Eu devo ter deixado aqui em casa. Vou procurar... — disse ele com um tom preocupado. Ele olhou nas gavetas da cômoda, nos bolsos dos paletós, debaixo das almofadas de espuma D28, revestidas de fibra de silicone e estrutura de madeira com percinta traçada do sofá marrom de revestimento chenille e... nada. Só uma moeda de 25 centavos. Da antiga.

Dava pra notar o desespero se formando em seu rosto. Não havia creme da Avon que maquiasse a sua cara de transtorno. Ele decidiu se abrir com a mulher:
— Martinha, juro que não levei o celular. Vou ver se deixei na casa do Alberto de qualquer forma. — E saiu de carro às pressas, mas não para a casa do tal Alberto, onde ele fingira que ter estado naquela manhã de sexta-feira. Aquele era o caminho para Ellen. Chegando à casa de sua amante, ele foi logo preciso.

— Meu bem, você por acaso viu meu celular? Acho que, tirando a roupa naquela agonia, ele acabou caindo pelo chão — declarou ele, abaixando-se para ver por debaixo da cama. — Você não atendeu ele, né?
— Claro que não, meu bebê. Você tem certeza que veio com celular pra cá?
— Claro que não. É só um palpite. Ora, pra onde mais eu levaria o bendito?!
— Vamos ligar pra ele então — disse Ellen, sempre prestativa. E como. — Ó, tá chamando... vê se você escuta a musiquinha!
— Não, meu amor. Eu deixei no modo silencioso. Disso eu me lembro.
— Vê se tá vibrando em alg... Oi, alô! Sim, é... (Pequena pausa para reflexão.) Tudo bom?! Aqui quem fala é... Joana Linhares. Queria saber se seu marido está disponível no momento... (Nessa hora, ela deu uma piscadinha sarcástica para Amaury.) Sei, então quando ele chegar, peça prele ligar presse mesmo número, ok? É a respeito do preço de uma... Isso mesmo! Então até mais, senhora... (E virando-se para ele:) Oh, voz chata essa da tua mulher, Amaury!
— Por isso que venho aqui todos os dias escutar sua voz, meu anjo! — E se despediu, dando um beijo de cinema em Ellen. Daqueles com direito à mão boba e tudo. “Porra, deixei em casa a porra do celular!”, pensou ele, bem tranquilamente no caminho de volta. Finalmente em casa, ele disse:
— Mas é claro! Como não procurei o celular do lado do estabilizador do computador? Por isso que vivo todos os dias da minha vida dependendo de você, meu... anjo! — reverberou ele, suando frio, e com aquele mesmo esquema do beijo na testa exatamente nas reticências.