sexta-feira, 11 de março de 2011

A vida cheira a peidos úmidos (Editado)

A vida, sim, cheira a peidos úmidos. Naquele dia, eu cheirava a álcool. Se eu vomitasse no tanque do meu Gol Bola, acho que ficaria uma semana sem pôr gasolina. Fedia. Não a gasolina, nem a vida, mas o cigarro que eu acabara de acender.

Já ficava enjoado do gosto. Mas era bom ao mesmo tempo. Abri uma cerveja. A geladeira estava cheia delas. Minha mulher acorda, me perguntando onde eu andara a noite toda. Quem mulher pensa que é pra sair perguntando?


— Acordei agora, amor — disse eu.

— Esse cheiro de Halls preto no ar me diz algo.

— Que é o meu último. Nem me peça.

— Não me venha com essa...

— Tá bom. Tome um. Só dessa vez.

— Cínico! Você tá com bafo de cachaça... E passou a noite toda perambulando nos bares, não foi?

— Epa! Nada de cachaça. Isso é uísque com cerveja. Misturei por acaso. Não era minha intenção. E outra: eu tava num só bar a porra da noite toda — reverberei eu.

— Darrel, Darrel. Você não tem jeito — disse ela, fazendo cara de esposa que fala o sobrenome do marido.

— Homi, vá deitar! Você ainda tá com remela na cara, pelamorideus — sugeri. A propósito, não vou dizer meu primeiro nome. Não vou. Não gosto dele.

— Anselmo, vá se foder! — sugeriu também, Carol, minha mulher. — E me dê um gole dessa cerveja logo...


Quem mulher pensa que é pra sair mandando? Fico puto. A vida cheira a peido. Dessa vez, não úmido, afinal, esse saiu trovejante. Só que o cheiro era de quem tinha muito tira-gosto na barriga pra colocar no trono. Minha mulher me xingou de qualquer coisa e saiu com a mão no nariz. Quem mulher pensa que é pra sair reclamando? Foda.

Não é à toa que meu pai me aconselhava a nunca casar. Me lembro como ontem: “Meu filho, não case”. Saibas palavras. E ainda concluía: “Tô na merda, você sabe”. Eu sabia. Minha mãe era uma velha morta. Dona-de-casa simples. Não gostava de sair, tampouco de festas. Meu pai ia era raparigar. E com todo o direito. Sempre ouvi dele que o que não se acha em casa, pode-se encontrar na calada da noite. Algo assim.

Eu não. Meu negócio não era esse. Até porque Carol era um absurdo na cama. Parece que sabia o Kama Sutra de cor; coisa instintiva mesmo. Fizemos do “Chão de estrelas” até a “Cadeira de balanço”. Ah, não sei os nomes das posições. Mas sou bom nisso, apesar dos meus 31 anos já atrapalharem na flexibilidade — meu joelho ainda tava uma maravilha.

Carol era bancária e acordava sempre cedinho. Eu, digamos, estava descansando, no momento. Sabe como é, né? Muito estresse. Boas férias estas. Era terça-feira. Eu tava na verdade me tornando um alcoólatra. Ninguém precisa mais de professor de Literatura nas escolas. Isso o que eu era; um desnecessário.

Os alunos, sempre metidos a espertos, pesquisavam tudo na internet. Os resumos dos livros, tudo. Que bela merda! Mas eu tinha sido expulso, porque tinha chegado pela terceira vez de ressaca pra dar aula. Mentira, certo... Eu cheguei bêbado. Mas só foi uma vez. Juro!

Minha mulher saiu pro trabalho. Me deu um beijo na bochecha, antes de mais nada. Deixou ovo frito na panela. Eu não gostava muito. Já tinha ficado enjoado com o gosto. Mas era bom ao mesmo tempo. Não sei, talvez porque essa é a “comida do solteiro”. Bem, eu tava casado há dois anos. É, cometi esse erro. Mas Carol tinha seus floridos 24 anos e valia a pena estar com ela. Já falei dela na cama?!

Lembro vagamente que ainda tentei dar um cochilo. Porque realmente ia ser só um cochilo. Passei coisa de 29 horas acordado... Pra acordar do jeito que acordei... De um jeito que ninguém acorda... A corda vai se partir logo. Não tem nó que dê jeito.

*

Eu acordei de uma forma que ninguém que eu conheça acordou. Cambaleando, fui com sede até a geladeira. Estava totalmente atordoado. Peguei uma cerveja. Duas. Abri as duas. Bebi as duas. Uma de cada vez, claro.

Eu deveria ter bebido água, alguma coisa, alguma voz, algum sussurro dizia: “Beba água, viado!”. Mas eu achava tão bonitinho... que resolvia não obedecer. Mas não obedeci mesmo... É igual à ordem de esposa. Ninguém cumpre, mas acha fofinho. OK. Na verdade, eu tava muito puto.

Tinha acordado, ora. Eu deveria estar no décimo sétimo sono, senão no décimo oitavo. Resolvi colocar um Halls na boca. Preto. (Curioso, né? Por que o Halls preto é branco?!) Enquanto ele não se desmanchasse na minha boca, eu não tentaria dormir. Engasgar com um drops era a maior bobagem do mundo. Adormeci. Engasguei. Porra!


Ainda tentei cochilar. (Eu quero que minha Carol volte!) Só pensava em minha esposa. Nunca mais nós nos amamos. Nunca mais nós fizemos amorzinho gostoso, como ela costuma chamar. Nunca mais eu comi batata frita.


— Quer bem torrada?

— Mais ou menos — disse eu.

— Como assim?

Eu gosto dela marronzinha, a batatinha.

— Foda-se (um foda-se cordial)... Lave as panelas, se quiser.

— O que isso tem a ver?! Sou eu que vou fazer isso mesmo... — disse eu, pra mim mesmo, conformado.


Eu gosto de não me intrometer nessas coisas. Esses assuntos comigo mesmo... não têm futuro nunca. Não consigo concordar com isso ou aquilo aqui dentro de mim, às vezes. Por isso, não consigo me sentir em paz. Eu sou homem, ele, meu outro eu, é meio bicho.

*

Vou parar de fumar Camel. Vou parar de fumar. Pronto, parei. Decidi isso, apagando um cigarro que eu havia acendido sem avisar pra mim mesmo. De repente, me peguei acendendo outro. Mas era só pra ver se o maldito Halls preto derretia na boca.

Não vou parar de fumar. Não consigo. Essa merda é boa demais. Eu como bacon, como ovo, como miojo, como picanha, como gordura à fole (do francês nordestino, “aos montes”), como o que for. Vou morrer pela boca mesmo... Que seja pelo cigarro, pelo menos. Eu estava agoniado; parecia um mau pressentimento.

Deitei. Pensei na vida. Não tinha nada pra pensar. Nada que valesse a pena. Nada que eu lembrasse que valia a pena. Nada que eu lembrasse que podia valer a pena. Nada que... Nada que eu pudesse reclamar ainda mais. Fato. Tentei dormir. Me virava de um lado ao outro. (Ai, que travesseiro fofinho!) Mas nada de eu dormir... Levantei. Fui na geladeira. Peguei a garrafa d’água, despejei tudo na pia. Peguei uma cerveja, despejei tudo na garganta. Ou melhor, “depositei”. Depois disso, eu posso ir até dormir. Já pensou que sossego?! Que falta faz minha mulher agora. Ela faria batata frita do jeito que eu não gosto...

*

Mas não sei por que eu não conseguia pregar o olho. Mal lembrava que horas eram... (Deixe-me conferir no relógio da cozinha... Depois de alguns passos até lá, voltarei pra minha máquina de escrever.) Bem, já eram 10h! Devia haver alguma explicação pra isso.

E havia. Olhei de relance para o calendário 2004, atrás de mim, na geladeira. Era dia 13. Era dia 13 de agosto. Era sexta-feira 13 de agosto. Estava explicado. Senti um ar gélido nas minhas entranhas. Toda a minha ossatura se arrepiara só de pensar nesse dia, nesse mês. Não que houvesse acontecido comigo nada de significante especificamente nesse dia, mas, porra, era sexta-feira 13! E em agosto!

Como todos sabem, a tal sexta-feira 13 é tida como o dia do azar. E agosto é um mês de mau agouro. Não sei o porquê disso direito, mas meu pai morreu em agosto; Getúlio Vargas se matou; as bombas estadounidenses atingiram Hiroshima e Nagasaki; e por aí vai. Esse pavor todo tinha explicação.

Tenho paraskevidekatriafobia. Traduzindo pro português, tenho parascavedecatriafobia. Fobia desse dia, em específico. As pessoas dizem que a sexta-13, vinculada ao mês de agosto, teria alguma ligação com as bruxas. (Minha casa está sempre suja. Odeio vassouras!)

Até no Tarô, o número 13 representa a Morte! Porra, isso me persegue. Há sexta-feira 13 todo ano – pelo menos uma vezinha. Mas eu não queria ter esse medo... Essa crença no azar desse dia maldito começou no século 19 e se intensificou no 20 – pelo menos uma vezinha não deu 13, né?

Na verdade, às 13h daquele dia, algo não muito agradável iria acontecer. E meu medo aumentaria. O pânico tomaria conta de mim e, enfim, viria uma ira descontrolada, explodindo como uma bomba de São João. E eu não saberia tomar qualquer decisão séria, usando somente o recurso racional. E não falaria nada inteligível aos ouvidos humanos e sãos.

*

Fui pra cama. De repente, não me sentia no todo. Acho que eu estava apagando de vez, pra ficar coisa de cinco dias dormindo. E cinco noites, claro. Minhas antenas mesmo assim ainda estavam ligadas. Percebi raios catódicos e cognitivos passeando entre meus hemisférios. Parecia que minha mente estava sendo fatiada bem lentamente e em fatias bem modestas – como numa ressonância magnética.

Carol me falava que sempre desejou ficar em transe e conhecer outras galáxias ou mesmo a Nebulosa de Órion – não lembro direito. Eu vagamente ouvi falar dessas experiências; imagine de EQM... Experiência de Quase Morto, como dizem. Tive a sensação de ficar mais leve.

Era a minha alma se dissipando. Ainda dessa forma eu tinha a consciência de que eu existia e tinha um papel no mundo das ideias, logo adiante. Nunca acreditei muito em Deus, mas agora sentia a mão do Criador puxando meus cabelos e chegando mais perto pra conferir meu bafo de álcool. Ele, um sujeito deveras iluminado, se afastou logo. (Acho que ele não gosta de cerveja nem uísque... o negócio dele mesmo é vinho!)

Deus era mais pra um espírito albino sem olhos do que o velhinho de longas madeixas e barba brancas que sempre achei que poderia ser. Afinal, é o que todos pensam dele. Quem lá sabe se o diabo é vermelho...

Nesse meio tempo, consegui ver, mesmo com o ambiente clareando demais, (Devia ter fechado a porra da cortina!) que algo um tanto transparente flutuava logo acima de mim. Era meu espírito.

Eu estava lindo. Um pouco gordinho, mas uma coisa divina. Sem olheira, com a barba feita, tomado banho. No entanto, como eu conseguia pensar, se meu espírito estava fora de mim? (“Ele está fora de si!”) Podiam pensar que eu estava ficando louco. Isso só podia ser um sonho. Tinha de ser!

Eu já estava começando a entrar em pânico. Quando me dei por mim, não conseguia me mexer. Nem uma mecha do cabelo pré-grisalho sequer. Foi aí que entendi o que aquilo em cima de mim, nadando no ar, queria.

Debruçou-se sobre mim, pra lá e pra cá – me assustei um pouco. Ele me fez sinal pra esperar, resmungando que não iria me machucar, afinal de contas, eu era ele. Me perguntei se meu clone sobrenatural tinha os mesmos medos, os mesmos desejos, além das feições.

Ele foi se afastando, com destino certo. (Vou morrer aqui nesse lugar e vai ser agora!) Minha pupila estava meio dilatada e o meu espírito, desfocado. Chegou à geladeira, abriu aquela Brastemp branca velha cheia de cerveja em lata e tirou uma. Minh’alma abriu enfim o líquido e bebericou. (Que porra é essa?!) Fiquei feliz e ao mesmo tempo todo estranho.

Beber depois da morte era algo que me deixava curioso. Que gosto teria? Haveria aquele frenesi nas nossas veias? Por que a cerveja não caia simplesmente no chão, já que aquilo ali à minha frente era somente uma alma penada? Como é que...

Como é que eu voltei a mim mesmo? Só agora acordei. Era um sonho. (Tinha sido mesmo?!) Decidi parar de beber pra sempre. O medo da morte bateria à porta sempre que olhasse para alguma bebida alcoólica e... E eu queria viver. Quero.

*

Carol chegou do trabalho – eu ainda estava muito cansado; tinha dormido muito pouco. Dei a notícia:

— Parei de fumar!

— Que bom, amor! Vou poder beijar na sua boca agora — brincou ela.

— Não, não. Parei de beber...

— Hã? Não acredito!

— Tive uma experiência muito caótica enquanto você estava trabalhando e decidi parar com essa merda. Ficar cheirando a cachorro sarnento não é lá muito agradável... Eu nem fico mais bêbado!

— O que aconteceu?

— Nada. Só não quero mais beber nem tocar no assunto.

— Por quê?

— Fiquei com medo.

— Que dia é hoje?! — Ela fez cara de surpresa. As maçãs do rosto foram crescendo, crescendo. Abriu o sorrisão que só ela... — É dia 13. Sexta-feira 13!

— Pare! — Aquilo sem nome foi tomando conta de mim.

— É sexta 13... Mas você, hein? Um homem desse tamanho... Com medo de um diazinho qualquer...

— Não é, não. Eu tenho pavor!

— Deixe de besteira, amor.

— Amor, o caralho!

— Errr. — Carol tinha na feição do que se chama de “O quê, rapaz?!”. Ela ruminou um pouco, não conseguindo engolir aquele insulto. — Não fale assim comigo...

— Se foda! — Peguei uma faca cerrada em cima da pia e fui atrás dela. Me sentia bem com isso. Era uma sensação nova. Carol não acreditava no que via. Estávamos “conversando” na cozinha e ela saiu correndo em direção à sala.

— Fique longe de mim, seu doido, filho da puta!

— Venha cá, sua vaca. Vou lhe mostrar o medroso!

Segui na direção dela, com a ira transbordando nos olhos. Parecia mais um pitbull atrás de um gato siamês manco ou uma cadela no cio. Ela tinha tropeçado na mesinha de centro – a canela dela latejava. (E a cadela latia!) Gritava palavrões inaudíveis pra mim, que estava fora de meu estado normal. (Minha alma realmente voltara pra mim? Sou um ser sem alma agora! Vou cortar o pescoço dessa puta!)


— Chegue pra cá, meu bem! Venha sentir a porra da lâmina na sua barriga!

— Eu estou grávida, Darrel!


Aquelas palavras não tinham sabor algum. Nos ouvidos, só ouvia o meu próprio batimento cardíaco acelerado, dominando as minhas têmporas. Foi aí que ela, dando a volta pelo sofá-cama salmão, tropeçou na mesinha de centro de novo, pegou o narguilé caído e jogou com uma precisão cirúrgica no meu rosto. O vidro dilacerou meu lado direito, logo abaixo do queixo. Fiquei grogue, mas ainda dei uma facada superficial no braço que ela jogara o objeto.

A casa estava se movendo rápido. Era eu caindo no chão. Havia sangue – só não sabia se era todo meu. Na queda, meu pescoço quebrou na bendita mesinha de centro da sala. Carol, um pouco afastada, sentou no tapete e começou a chorar com uma mão na barriga. (O bebê! O meu filho!) Apaguei. Finalmente pude ver minha alma. Ela estava na cozinha, o tempo todo. Estava bebendo as minhas cervejas de novo. Fiquei puto e esqueci do bebê. Aquele era eu-alcoólatra. E eu agora era um bicho.

Quando ela, a alma, retornou, senti uma vibração. Comecei a chorar desacordado. Minhas lágrimas inundaram o tapete ensanguentado e minha mulher pode perceber. Parou de chorar. Veio até mim e fez carícias.


— Seu merda, eu te amo! Mesmo assim. Não morra...


(Eu também te amo! Mas não num dia 13...) Eu já estava morto. Mas não sabia por que minha alma tinha voltado. Esse agora era o meu lugar, pra sempre. Eu teria então a minha própria casa mal-assombrada. A corda da vida tinha se partido. E eu também.

4 comentários:

  1. E aí que eu tive de me ajeitar na cadeira, olhos vidrados na tela, até meu cuscuz queimou. Genial! Lembrou-me Bukowski xD

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  2. E aí que o cara era professor de Literatura? Porra! rs Tensão até o fim. Gostei, gostei! ^^

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  3. legal, nao parei de ler ate o final!!!
    muito ilario velho!

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