terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Punhos de aço em ponta de faca

Preferia King Diamond a Stryper, se é que me entendem. Gostava de histórias de terror e não de contos de fadas. Já havia passado dessa fase de acreditar em tudo o que dissessem. Tirava agora suas próprias conclusões.

- Mãe, não quero mais ir à igreja...

Ele sabia onde isso ia terminar. Nada feito. Seus 12 anos não lhe davam moral alguma para argumentar o que fosse.

- Mas, pai, eu não gosto de jogar bola... Muito menos do Botafogo! Não quero essa camisa...

Ele sabia. Terminaria do jeito de sempre. Com ele, sozinho, trancado no quarto. Seu mundo era aquele, obscuro. Mas ele não era essencialmente mau.

Alguns psicólogos o examinaram por meio de desenhos. Primeiro, um castelo medieval, com direito a carrascos nas janelas. (Quem sabe, um dragão de três cabeças no calabouço...) Depois, uma borboleta. Negra. A transição da indefesa lagarta para o pomposo bicho voador.

E, por último, o inominável. Desenhou um demônio (Vixe, eu disse o nome!), talvez Beliel. Mas eram somente rabiscos.

- O que é isso?! – perguntou o psicólogo.
- É meu amigo imaginário. Ele dorme no meu armário. Na verdade, só quando eu arrumo minhas roupas direitinho. Ele gosta de espaço.
- Ele está aqui, agora?
- Do lado do senhor.

Matias engoliu seco. Começou a sentir uma leve brisa, como se da respiração da criatura. Era fria e não quente, como tinha imaginado antes. (Se os demônios vêm do inferno, que é quente, então até o bafo deveria na mesma temperatura, não?) Os olhos do psicólogo miraram a parede do seu lado esquerdo. Aquele ser deveria estar em sua forma invisível. Ou não. Essa era a mais natural de suas formas. Afinal, os “anjos da guarda” também não seriam invisíveis?!

“Que o meu me proteja!”, pensou Matias, imóvel.

Enquanto isso, o garoto ia colorindo com tons de vermelho e roxo. Os chifres estavam ganhando um acabamento especial.

- Doutor, e se eu te disser que tô só brincando...?

O psicólogo nada falou. Simplesmente se levantou e foi ao banheiro. Jogou água da pia no rosto. (Enganado por um merdinha desses...) Lavou as mãos e as enxugou. O nervosismo se esvaiu. Como a água pelo ralo. Quando deu meia volta, percebeu pela porta entreaberta que o desenho do garoto Bryan havia sido concluído. Pois, ao seu lado, estava Beliel. Em carne viva. (Estou delirando!) Uma carruagem de fogo, dois anjos, em vermelho.

- É esse o seu amigo?! – esforçou-se em falar, sem parecer tão assustado.
- Quem?! – perguntou o menino, olhando para os lados.

O mal confundia. O pesadelo não tinha hora pra acordar...

*

A jornada de trabalho era cansativa. Quase 12 horas por dia dirigindo um carro de uma empresa de comunicação. Ser motorista hoje em dia parecia algo fácil – ar condicionado, travas, vidros elétricos, mordomia. Não.

A vida era puro estresse. O trânsito não dava conta da paciência. Contrito, Bryan ia levando sua vida, sem perspectiva nenhuma. Muito menos de ir ao reino dos céus.

Seus 49 anos já pesavam em suas costas. Já havia esquecido toda aquela invenção de quando era pequeno. “Queria eu ter um demônio da guarda”, pensava ele. Mas o que seriam demônios, senão as vozes da razão perscrutando em nossa mente?

Mas e o que o corpo quer? Relaxar. O norte indica um bar qualquer na beira de uma rodovia estadual. Eram quase duas da madrugada e Bryan ainda estava com o carro do trabalho. Que se dane!

- Joel, me vê aí um filé com fritas... E, antes de mais nada, uma cerveja gelada.
Foi servido. Ia todo final de semana pra lá. Do nada, resolveu oferecer um pouco da sua batatinha pro rapaz da mesa ao lado, que estava sozinho.

- Oh, eu aceito. Com licença... Brigado.
Edinho era o apelido daquele que pegou o petisco. Um rapaz que geralmente frequentava aquele bar e usava uma droga ou outra de vez em quando. Mas a culpa não foi de nenhum entorpecente. Nem dele. Ele não era atrevido. Foi-lhe oferecido novamente e “brigadão! Hmmm, muito gostosa essa batata. Tô só esperando pelo meu caldinho de feijão”.

Nesse ínterim, Bryan, ainda sorridente, mas sem puxar conversa, se levantou e foi ao banheiro. Não era dos que fedem tanto. Era de um bar decente. A cozinha pelo menos o era. Isso era o que realmente importava. Nenhuma mosca ou rabo de rato na comida. É disso que eu tô falando...

Na volta, o motorista se depara com a cena: Edinho estava de pé, com um palito na mão. Ele tinha alcançado pelo menos umas três batatinhas – das grandes, porra! – e, na boca, mascava sem parar um pedaço suculento do filé que acompanhava as fritas. Ou seria o contrário.

- Ei, filhadaputa do caralho, que merda é essa?! Comendo do meu tira-gosto... Você pediu?!
- Mas eu pensei que eu...
- Pensou nada. Você tá achando que sou seu pai?
- Claro que não. Ele não seria um viado cheio de chiliques desses...
- Como é, rapazinho?!
- Além do mais, tu deve ser um corno contido. De aliança no dedo e bebendo nos cantos. Vai pra casa cuidar da tua mulher, filhadaputa do caralho!
- Ei, quem te chamou disso primeiro fui eu. Você pediu...

E foi pra cima dele. Parecia que Beliel estava a seu lado de novo, ele que é o rei da confusão, da desordem, da luxúria. (Não há nada que dê mais prazer que arrebentar um miserável desses!) É, Beliel estava com ele. Dentro dele. Os dois eram um só e o objetivo era claro.

Várias investidas foram dadas. Socos, pontapés, mesa com o resto do tira-gosto voando. O dono do bar interveio, quando notou que Edinho já havia levado três ou quatro cruzados de direita. No chão.

- Para com isso já, Bráia!
- Meu nome é... Bryaaaaaaaan!!! – disse ele, enquanto nas reticências cuidava de calar a boca do proprietário do estabelecimento com um murro daqueles.

Quando ele voltou para o páreo, Edinho tinha saído de onde estava. O dono do bar tinha lhe dado tempo. Era só correr, fugir pra longe da confusão. Talvez ele estivesse se arrependendo de ter chamando Bryan de viado e de corno. De filhadaputa do caralho, não.

Começou a correria pela rodovia, a AL-101 Norte, na região de Riacho Doce, em Maceió. Era dia 13 de fevereiro de 2014. Nada de sexta-feira. Isso seria mau agouro.

Era quinta-feira. Thursday. Ou ainda, dia de Thor. Quem ia lembrar dessa porra correndo? Não sei. Ele lembrou, não sei por quê. O que posso escrever mais, ora?

Edinho estava ofegante. Tava... quase sem... respirar direito. Mas a adrenalina o guiava. Atrás dele, de supetão, outra coisa o empurrava. Contundo, como que um trebouchet ao contrário – o impulso lhe levou pra baixo, de cara no asfalto já carcomido, precisando de ajustes aqui e ali.

Era Bryan no carro da empresa. Ele atropelou Edinho. Voltou. Passou de novo por cima do corpo, dando marcha à ré. E de novo, agora para frente. Pra frente como se estivesse passando por uma lombada física de ossos se quebrando.

A vítima não resistiu e morreu lá mesmo. Uma equipe médica viria, jornalistas tirariam fotos. Mas ninguém saberia da verdade.

Beliel saiu, cumprindo sua sina apocalíptica. E Bryan começou a chorar, com pé na embreagem. Ele gritava algo como “eu não sou corno! Não posso ser! Corno tem chifres...”.

2 comentários:

  1. Esse aí é o suprasumo do cuscuz queimado! Muito bom, Breno, de verdade!

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  2. Pourran... viajo mermo! Muito bom pequeno Breno! Vou até ler em voz alta aqui pra Myla, que ela tá sem óculos! =D

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